O ex-Presidente da República, António Ramalho Eanes, esteve em Tóquio entre 27 e 30 de Setembro 2009, onde participou na Conferência "África & Globalização", organizada pela Universidade das Nações Unidas, que contou ainda com a presença dos antigos Presidentes da República da Nigéria (Olusegun Obasanjo), do Gana (John Kufuor), do Mali (Alpha Konaré) e Namíbia (Sam Nujoma).
Em seguida, transcreve-se a intervenção do General Eanes na Conferência.
"África: O peso do passado e o valor da cultura no encontro com o futuro", por António Ramalho Eanes
Observadores há que defendem a tese de que a vigente globalização é inteiramente nova na História. Outros há, pelo contrário, que advogam que ela não é, na sua essencialidade distintiva, diferente da ordem mundial que prevaleceu sob a batuta dominante da Grã-Bretanha nos séculos XIX e XX.
Creio, porém, que a pretensa «velha globalização», a inglesa (entre 1840-1914), não passou de um lato e muito importante processo de internacionalização da economia e das ciências – de todas as ciências – e dos seus frutos tecnológicos.
A globalização do «mundo finito»
Defendo, pois, a tese de que o mundo antigo teve a sua própria globalização. Chamar-lhe-ei, utilizando uma expressão de Paul Valéry, em Regards sur le monde actuel, a do «mundo finito», em contraposição à actual, que designo por a do «tempo finito».
Até meados do século XVIII, “O mundo não existia enquanto unidade para a humanidade”. O mundo, aos olhos do homem, não constituiria, então, uma unidade real. Poder-se-á, mesmo, afirmar que o mundo desconhecia o mundo. Não havia então fenómenos – quaisquer que fossem – universais.
Ainda em 1750 a velocidade de deslocamento do homem se media pelo seu passo ou pelo passo da sua montada, ou pela velocidade do seu barco à vela. “O mundo era como que formado de humanidades separadas”, só ligadas, parcialmente, pelo comerciantes.
Esta situação começa a mudar com a chamada «epopeia dos Descobrimentos», epopeia marítima iniciada pelos portugueses logo no século XV, com a conquista de Ceuta, no norte de África, onde desaguava o comércio das especiarias orientais, e do marfim e ouro africanos. Aventura de um pequeno povo, pequeno demograficamente, parco de território (com 89 mil km2) e recursos, vivendo sob a ameaça centriptamente unificadora de Espanha.
É assim que Portugal se aventura nos mares, tornando-se primeiro na aventura oceânica europeia. Intuição e reflexão geoestratégica, notáveis, que os leva a «descobrir» o Atlântico, o Índico e o Pacífico.Sob a liderança do príncipe navegador D. Henrique, Portugal ultrapassa o cabo Bojador, na costa ocidental africana, em 1434; em 1487 atinge o Cabo da Boa Esperança, no extremo Sul de África; em 1498 chega à Índia; em 1511 instalaram-se os portugueses em Malaca e em 1513, partindo daí, iniciam uma ligação comercial com a China, desta recebendo, em 1557, a Península de Macau.
Ao Japão – de cuja existência a Europa recebe notícia através de Marco Polo, que o refere como “uma ilha grande, de gente branca, de boas maneiras e bela”– chegam os portugueses em 1542 ou 1543.
E, até em homenagem aos amigos japoneses presentes, permitam-me uma breve digressão sobre o mutuamente gratificante encontro e descoberta luso-japonês. Desse profícuo encontro e contacto, muitas foram as palavras japonesas que passaram para a língua portuguesa, que nela mantêm assento e uso corrente (mais de 30). Muitas foram, também, as palavras portuguesas introduzidas no vocabulário japonês (termos religiosos, nomes geográficos, de navegação, de alimentação, de indumentária e vestuário).
No século XVIII, quando outros povos europeus acordaram para a «aventura» ultramarina, já os impérios português e espanhol estão em declínio. É então a vez de Inglaterra, França, Províncias Unidas e países escandinavos.
A estes países se juntarão a Alemanha e a Itália. Por volta de 1770-75, navegadores ingleses e franceses descobrem os chamados «arquipélagos oceânicos». Um século mais tarde, os grandes exploradores Brazza, Livingstone e Stanley descobrem as nascentes do Zambeze e exploram a bacia exterior do Congo.
Nas expedições polares dos americanos, ingleses e noruegueses encontra-se como que o epílogo do processo mundializante iniciado por portugueses e espanhóis. As expedições ao Pólo Norte (em 1909) e ao Pólo Sul (em 1911) permitem que a humanidade conheça todo o globo, que se torna, a partir de então, conhecido. Concluída estava a primeira mundialização histórica, a globalização do mundo, a do «mundo finito».
Interesse haverá em rever, mesmo que sucintamente, as consequências, fastas e infaustas, desta primeira globalização. Interessante será esse regresso à história da colonização protagonizada pela Europa, pois pode ajudar-nos a bem perceber os erros graves, então reiteradamente cometidos, em especial sobre os povos africanos: porque o fizemos, onde nos encontramos, e o que podemos e devemos fazer para que a humanidade, que a globalização do «mundo finito» tornou una, viva em verdadeira democracia, que pressupõe, visa e exige, como disse John Keane, “uma memória [activa] orientada para o futuro (…) para estimular a imaginação política [e a responsabilidade social] democrática contemporânea”.
Colonização africana e crise pós-colonial
Traço distintivo de toda a colonização africana foi a dominação política, económica, intelectual e cultural, mesmo no aspecto religioso.
Na génese desta perversa condição terão estado o preconceito racial e, naturalmente, o estádio de avançado desenvolvimento técnico-científico e cultural da Europa.
Nesta linha pretensamente justificativa, a colonização pretenderia:
- Fazer aportar a civilização às populações africanas, melhorando as suas condições naturais e elevando o seu nível de vida;
- Libertá-las das primitivas crenças, de perversos efeitos sociais, de maléficos efeitos na condição e vida de tantos africanos (bruxaria, magia negra, possessão pelos espíritos), incluindo crianças;
- Corrigir injustiças, algumas delas, aliás, exercidas barbaramente pelos próprios colonizadores (como é o caso da escravatura negro-africana).
Aliás, poucos não foram os cidadãos ilustres que partilhavam deste «superior propósito de ensinamento» e nele se inspiraram para escrever obras notáveis, como foi o caso de Kipling.
Obnubilada pela consciência da sua superioridade militar, cultural, intelectual e económica, dominada pelo complexo eurocêntrico, empenhada em satisfazer interesses materiais diversos, incapaz foi a Europa de bem perceber que os povos, todos os povos, e, obviamente, os africanos também, têm uma tradição histórica, uma personalidade cultural, que se impõe respeitar, até para a poder, sem traumas psicossociais, mudar, transformar, modernizar.
Na Conferência de Berlim, realizada entre 15 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885, que decidiu a partição de África entre as grandes potências militares e capitalistas da Europa, obedecendo apenas a uma lógica de força e interesses, consideradas não foram, nem minimamente sequer, as realidades étnico-territoriais africanas, as suas animosidades históricas. Facto, este, que necessário é considerar para explicar e compreender muitas das guerras civis que têm devastado o continente africano, como, por exemplo, a dos hutus e tutsis no Ruanda, que se processa genocidicamente perante a passividade das instâncias internacionais, da ONU em especial.
Assim, ao não atender a este conjunto de imperativas razões, morais até, fez embarcar os povos africanos numa aventura culturalmente desfigurante, que preferiu o encarceramento à liberdade, a opressão à expansão, o engano à verdade, a parcialidade à totalidade.
Neste quadro, se poderá, creio eu, encontrar os principais motivos que terão levado África a falhar o seu encontro com o presente e o futuro, na modernização económica e no desenvolvimento social.
Assistido se tem ao “agravamento trágico e dramático da crise pós-colonial através de guerras civis que se desenvolvem um pouco por todo o lado na África sub-sariana”. Ditaduras sanguinárias se têm repetido dramaticamente no continente africano, que têm destruído o presente e problematizado o futuro de milhões de africanos.
E, tanto ou mais grave, contribuído terão para expressiva expressão darem à “forte instabilidade crónica”, a “rebeliões sangrentas e a ódios étnicos inscritos em velhas rivalidades históricas”, mas, também, para destruir “os laços tradicionais da solidariedade africana”.
Na verdade, incapazes se têm mostrado de modificar promissoramente a situação do continente africano, que definir se pode referindo que África:
- Com 13,4% da humanidade, não alcança senão 1% do PIB do planeta;
- Não participa senão em 2% do comércio internacional;
- Não recebe mais que 1% do investimento directo do estrangeiro;
- Apesar de um crescimento relativamente forte da economia africana em 2003, um terço dos países da África subsariana registava um recuo no rendimento por habitante, enquanto o número de pessoas em situação de pobreza extrema (menos de 1 dólar por dia) aumentava aproximadamente para 60 milhões depois de 1990 na região.
Acresce, negativamente ainda, que a via democrática por que optaram muitos governos africanos, depois do fim dos anos 80, sob a pressão e fiscalização do Fundo Monetário Internacional, da Comunidade Económica Europeia (Terceira Convenção de Lomé, em 1985-90) e da própria França (Cimeira Franco-africana, em La Baule, em 1990), longe está de ter contribuído para qualquer sucesso. Problemas graves surgiram com a proliferação anárquica de partidos políticos de base étnica, que alimentados foram pela frustração e correlativa contestação social, estimulados pelos nocivos efeitos de subdesenvolvimento e ampliados pelas possibilidades oferecidas pela relativa liberalização dos meios de expressão.
O peso asfixiante da dívida externa e as políticas de austeridade impostas pelo Fundo Monetário Internacional contribuído terão para destabilizar os regimes que optaram pela via dita democrática porque a redução das disponibilidades financeiras desses Estados frustraram as expectativas da clientela que estão na base da sustentação de inúmeros Estados. “Nestas condições bem poucos Estados africanos parecem capazes de conciliar a ordem e a liberdade”, que indispensável é para que as sociedades sejam civis. Situação, esta, de contestação, de agitação social, que negativamente interfere nos detentores de capital que pensem investir em África. E sem investimento externo, como é óbvio, possível não é manter a estabilidade macroeconómica e acelerar as reformas estruturais, nomeadamente na saúde, educação e serviços públicos (rede de transportes públicos, energia, água, telecomunicações, etc.).
A tudo isto, já sobejamente problemático, se somam, negativamente também:
- Situação demográfica explosiva, caracterizada por um efectivo pouco numeroso de adultos em idade de trabalho, e manutenção de uma forte natalidade.
- Sobremortalidade infantil devido à subalimentação.
- A SIDA, particularmente violenta (sobretudo no Ruanda, Burundi, Uganda, Quénia, Tanzânia e Zaire), que agrava a situação económica, financeira e social (26 milhões de africanos estão infectados, o que localiza, no continente, 7% das vítimas da pandemia do HIV).
As organizações internacionais (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, ONU e OCDE), bem como numerosas organizações não governamentais, sensíveis se terão mostrado a esta situação, fixando, sob a designação “Objectivos do Milénio”, um programa para redução para metade da pobreza extrema até 2015. Objectivos que parecem excessivamente ambiciosos. Na verdade, as ajudas públicas ao desenvolvimento permanecem a um nível insuficiente, apesar do esforço suplementar decidido em 2002, que mais não fez que compensar as insuficiências de ajuda acumuladas desde 1990. Cumulativamente, o NEPAD (New Partnership for Africa’s Development) lançou, em 2001, com os países ricos do G8, um programa de ajuda ao desenvolvimento, vinculando a sua concessão às reformas democráticas e liberais. Modesto, bem modesto, se mostra o balanço dos resultados conseguidos em 2005. Verdade é que a ajuda institucional contribuído terá, justamente, para reduzir o peso da dívida externa africana, que, depois de 1995, se situava ainda nos 205 biliões de dólares.
Difícil é a África, nesta situação, recorrer ao endividamento externo, muito em especial depois da segunda crise financeira mundial. E o capital estrangeiro indispensável é para ajudar África a sair do pântano em que caiu e se encontra.
A globalização do «tempo finito»
A chamada «Nova Economia», com recurso à gestão liberal das técnicas modernas de informação e comunicação, tornou-se portadora de uma promessa de crescimento económico estável e duradouro. Da internacionalização (isto é, da intensificação das relações entre as economias nacionais) o neocapitalismo salta para a globalização, que do planeta faz um mercado único, global.
Mas, a globalização tem um reverso, que se deve, segundo os peritos, ao facto de nenhuma das actuais organizações internacionais estar capacitada, com autoridade suficiente, para a regular, para evitar disfuncionamentos, restabelecendo e impondo aos actores da economia globalizada regras de funcionamento, regras por todos admitidas e por todos, também, controladamente respeitadas.
Perante esta situação, claro se torna que o grande desafio, para a política, no século XXI, consiste em erigir, concertadamente, um modo novo de regulação mundial com novas instituições internacionais ou com as actuais adequadamente reformadas. Enfim, necessário e urgente se tornou restabelecer um controlo ético, político, jurídico e institucional sobre o capitalismo mundial.
Globalização e África: promessas e consequências
Também em África, a globalização foi recebida com esperança. Os fluxos de capital nos países em vias de desenvolvimento viriam a crescer promissoramente: multiplicados foram por seis, em seis anos (entre 1990 e 1996). Supunha-se, então, que todos – todos os países e homens – ganhariam com a globalização, que, supostamente, ajudaria os países em vias de desenvolvimento a “criar melhores ambientes económicos”, a saltar para a era da informação, a acelerar o desenvolvimento e a potenciar a harmonia global.
Porém, a África erudita encara a mundialização com cepticismo e, mesmo, grande preocupação. Situação que preocupado tem também as igrejas que trabalham em África, nomeadamente a Católica. Assim, a Santa Sé difundia uma nota sobre as finanças e desenvolvimento, em vésperas da Conferência da ONU, em Doha, em que refere que: “É necessário prestar uma atenção particular ao Continente Africano, onde o mapa do desenvolvimento regista fortes desigualdades. Em África, a situação é diferente de país a país; aliás, observa-se uma tendência à polarização entre situações de êxito na obtenção de recursos e na sua frutificação, e situações de total marginalização.”
A Globalização tornou-se, pois, um fenómeno com consequências desastrosas para os governos e para os povos do continente africano, como sejam:
A integração da economia africana na economia capitalista fez com que o «colonialismo» proporcionasse uma ferramenta legal para a dependência da economia africana face às economias ocidentais.
A privatização intensificou a integração dos países africanos nos sistemas globais de produção e finanças, encorajando os fluxos de investimento de capital e atraindo a propriedade de empresas anteriormente detidas por capital público por parte de capital estrangeiro.
África tornou-se o local onde são «despejados» uma série de produtos que pouco têm a ver com o povo africano, tanto a nível literário, como cinematográfico ou musical, o que acarreta a obliteração da cultura africana, conduzindo a uma visão eurocêntrica da realidade.
A globalização subverte a autonomia e os poderes da auto-determinação dos povos africanos. O peso da dívida externa dos países em vias de desenvolvimento, em 1994, atingira já 2 triliões de dólares, segundo o Banco Mundial. Naturalmente, esta pobreza massificada acarretou a privação dos cidadãos de uma existência com significado.
A falta de incentivos dos governos à produção local, a subversão da produção local por elevadas importações, a desvalorização cambial e o esgotamento de reservas externas é um dos efeitos da marginalização e subdesenvolvimento causados pelos agentes do desenvolvimento.
A globalização tem tornado muito difícil aos governos assegurarem protecção social, uma das suas funções centrais e a que tem ajudado muitas nações desenvolvidas a manter a coesão social e o apoio político interno.
Por outro lado, a globalização também danificou o ambiente natural de África. A título de exemplo, cita-se o Delta da Nigéria e o povo Ogoni em particular, afectados pela exploração petrolífera da região, que tem devastado a vida e o ambiente marinhos, tem afectado o fornecimento de água potável e causado uma série de doenças.
O futuro de África
Como poderá, pois, África libertar-se de tão pesada quão angustiante e maldita situação?
Para muitos, académicos e religiosos sobretudo, como é o caso de Engelbert Mveng, “a reconstrução de África passa primeiramente pela aquisição de uma espiritualidade empiricamente enraizada nos valores culturais africanos”.
Reencontrados esses antigos valores culturais, modernizados pela educação e sublimados pelas igrejas, razoável é esperar que a corrupção, que grassa em África – devido, sobretudo, à mancomunação perversa da economia e da política –, sofra manifesta redução e que a economia passe a ser dirigida pelo direito, este elaborado pela política, e ela própria dirigida pela ética. Então, e só então, haverá, em África, sociedades civis e civilizadas.
Mas, como operacionalizar, em África, uma dinâmica de confiante crescimento sustentado das suas economias, com potencial suficiente para erradicar as injustiças gritantes que assolam o continente neste tempo de irreversível globalização?
Reconhecida é a necessidade de um conjunto de políticas articuladas que permitam garantir a paz e a segurança, atingir e manter a estabilidade macroeconómica, assegurar a abertura ao comércio internacional e a liberalização dos regimes cambiais, atrair os fluxos de capital estrangeiro, dada a exiguidade de capital nacional, e estabelecer as necessárias infra-estruturas económicas e sociais.
Para conseguir a realização de tais propósitos, necessário se torna, entre outras medidas:
- Desenvolver uma boa governação, com competência e seriedade;
- Modernizar a administração pública com competência técnica e segurança legislativa;
- Garantir a segurança, do investimento nomeadamente, através de adequada legislação que garanta transparência, previsibilidade e seriedade no processo de decisão política e pública;
- Promover a independência competente dos tribunais, dotando-os de moderna organização, servida por pessoal tecnicamente competente;
- Estabelecer bancos centrais nos Estados, com independência, a que cabem, funcionalmente, garantir a estabilidade dos preços e a transparência na política monetária;
- Promover a ligação efectiva do governo com a sociedade civil, através de uma organização do poder político, de génese e funcionamento democrático, respeitadora da sua realidade cultural;
- Promover a aptidão e o mérito escolares, concedendo acesso à frequência gratuita do ensino superior, no país ou em universidades estrangeiras, contratualizando com estes a prestação de serviços ao Estado durante um certo número de anos após a formatura;
- Promover o ensino agropecuário, estabelecendo «bancos de terras», para terra conceder aos jovens agricultores, que deveriam ser apoiados financeira e tecnicamente por peritos agrícolas, nacionais e estrangeiros;
- Empenhar-se na formação de mão-de-obra especializada, sobretudo nos centros urbanos, em escolas de artes e ofícios, sempre que possível através de congregações religiosas com larga experiência nessas actividades;
- Promover um sistema flexível de prestação de serviços de saúde a toda a população, recorrendo aos meios e especialistas das Forças Armadas, a ONG e a voluntários, mesmo estrangeiros;
- Reformar as instâncias internacionais, as africanas nomeadamente, dotando-as de meios e poder efectivo para responder aos conflitos interafricanos.
Trabalho ciclópico, mas necessário e possível, como bem no-lo demonstra, em larga medida, o exemplo cabo-verdiano de eficaz, competente e democrática governação, merecedora da confiança, mesmo na utilização de ajudas financeiras internacionais.
Trabalho que, teoricamente pelo menos, tão ciclópico não seria se realização conseguíssemos dar a sonhos, utopias, que laboraram alguns dos grandes filósofos do século XVIII, como Emmerich de Vattel e Kant, sobre a construção de um Estado universal.
A notória incapacidade da ONU, a emergência do conflito que destrói os Estados e faz regressar facções da humanidade ao «estado de natureza», como acontece na Somália, justificariam a sua reformulação. Justificação que encontrar se pode, também, não só na presente crise económico-financeira mundial, e na necessidade de virtuosamente lhe responder, como até na necessidade, imperativa, de responder a uma mundialização para todo o sempre, às mudanças climáticas, à biodiversidade, à gestão racionalmente interessada dos recursos hídricos e submarinos, aos desafios energéticos, ao terrorismo, ao diálogo inter-religioso, etc.
Disse o Papa Bento XVI, na sua nova encíclica Caritas in Veritate, que é preciso, em nome do homem – da sua felicidade – pôr termo aos excessos da sociedade global, tão pouco virtuosa e tão dominada por poderes e interesses. E acrescenta que “não devemos ser vítimas dela, mas protagonistas”. Apontando a falência da ONU, defende uma nova ordem política e económica, sobretudo uma “verdadeira autoridade”, reconhecida por todos e com poder efectivo, capaz de ajudar, consistentemente, as economias em crise, promover um integral desarmamento, garantir a segurança alimentar e a paz, cuidar de salvaguardar o ambiente, e de tornar virtuosas as relações entre o capital financeiro, a economia e o trabalho. Enfim, um Estado de direito planetário – utópico, seguramente, ainda por muito tempo –, que bem virtuosamente poderia responder às duas globalizações, que fizeram a humanidade una, contígua, de unitária interacção.